segunda-feira, 24 de julho de 2023

O impacto das novelas turcas na América Latina

Binbir Gece, a primeira novela turca a debutar na América Latina (Foto: Divulgação/Global Agency)


Definida como a nova fábrica de telenovelas pelo jornal espanhol El País, a Turquia se consolidou no mercado de ficções televisivas e atualmente é o segundo país que mais exporta séries no mundo, ficando atrás apenas dos Estados Unidos.

O fenômeno turco iniciou no Chile em 2014, quando a emissora Mega, numa tentativa sem esperança de impulsionar a grade, passou a exibir o drama turco Las Mil y Una Noches (Binbir Gece), o qual foi ao ar na Turquia originalmente entre 2006 e 2009. A telenovela de origem euroasiática não somente elevou os números de audiência do canal, como se tornou um fenômeno, além de ser a responsável por estimular a aquisição de mais títulos provenientes da Turquia.

Segundo Ignacio Vicente, gerente de conteúdos internacionais do Mega, o drama turco chamou sua atenção de imediato devido ao enredo poderoso. Em 2012, junto com Patrício Hernández, diretor executivo do canal, ambos compareceram a uma feira internacional em Cannes (MipTV), na qual ficaram fascinados com o drama turco Las Mil y Una Noches, em cartaz na exposição. “Nós a assistimos em turco, mas a história era narrada em inglês. O trailer era péssimo, mas vimos que ali havia uma excelente história e saímos dali encantados com a telenovela”, confessou Vicente.

Binbir Gece está disponível no catálogo da Global Agency (Foto: Reprodução)


Las Mil y Una Noches permaneceu no ar por 10 meses no Chile, se convertendo em um fenômeno de audiências, elevando de 11 pontos para números acima de 30 no horário nobre. A trama chegou a ser esticada por meio da edição e ficou mais tempo em tela do que o esperado. Ao final de sua exibição, outros 5 dramas turcos já estavam em cartaz na televisão chilena, sendo 2 no Mega, 2 no Canal 13 e 1 no Chilevisión.

Desde então, países como Argentina, Paraguai, Peru, Uruguai, Colômbia, México, dentre outros, passaram a investir pesado em dramas turcos. No Brasil, essas ficções tiveram uma passagem na televisão aberta por meio da emissora Bandeirantes, a qual exibiu títulos, dentre os quais se destacam Mil e uma noites, Fatmagül: a força do amor e Sila, prisioneira do amor

Na Europa, em 2018, a Espanha também abriu espaço em sua programação televisiva para as populares séries turcas, tendo como ponto de partida a exibição de Fatmagül, exibida pelo canal temático Nova, a qual conseguiu uma média de mais de 700 mil telespectadores ao longo de toda a sua exibição. Assim, o folhetim se converteu na telenovela mais assistida da emissora. O grande sucesso de Fatmagül no país fez com que o grupo Atresmedia iniciasse os preparativos para um remake intitulado Alba, atualmente disponível no catálogo da Netflix Brasil.

Quais os ingredientes do sucesso das produções turcas?

Embasadas em conflitos do cotidiano e argumentos simples, as novelas turcas têm atraído um público cada vez mais sólido, composto por jovens e adultos. Essas produções apostam em enredos originais (em sua maioria) e priorizam a abordagem de temas de alcance universal, como amores impossíveis, desencontros amorosos, conflitos familiares, rivalidade entre classes sociais, dramas de superação, dentre outros. Essas características permitem um envolvimento do público com a história que está sendo contada, dessa maneira, conectando os telespectadores com cada personagem e sua jornada durante o desenvolvimento da ficção. 

Porém o grande diferencial das tramas turcas em comparação às recentes produções do gênero de natureza latina, é o resgate de mensagens simbólicas e sociais. Seja por meio de diálogos profundos, ou de gestos simplistas, como o toque entre mãos ou um abraço. O contato sexual muitas vezes é dispensado para dar espaço a uma situação mais sutil, por exemplo. Todavia, aqui cabe mencionar que a imposição da censura por um órgão do governo local é o que interfere nesta exposição limitada. Por isso, algumas produções são mais podadas. 

Cena de Fazilet Hanım ve Kızları, outra novela turca de muito sucesso (Foto: Divulgação/Star TV)


A censura na dramaturgia turca sempre existiu?

Apesar disso, algumas dessas ficções já fugiram da censura em algum momento. Claro, era outro momento na indústria, mas vale destacar alguns casos. Entre 2008 e 2010 o Kanal D exibiu o drama Amor Proibido (Aşk-ı Memnu). Protagonizada por Beren Saat e Kıvanç Tatlıtuğ, a novela gira em torno da relação adúltera entre tia e sobrinho. Além disso, os beijos ardentes do casal são comentados até hoje. 

Amor Proibido foi exibida no Brasil pela Band (Foto: Divulgação/Kanal D)


Em 2010 foi a vez do renomado diretor e produtor Osman Sinav ousar na telinha. No primeiro capítulo da ficção Kiliç Günü, o também roteirista levou ao ar uma cena onde um casal homossexual aparece seminu numa cama. No mesmo ano, Murat Ünalmış e Birce Akalay protagonizaram cenas calientes na novela Yer Gök Aşk, obra original de Sema Ergenekon e Eylem Canpolat

Cena da ficção turca Kiliç Günü, de 2010 (Foto: Reprodução/ATV)


No entanto, ao longo dos últimos anos, devido ao crescimento da política religiosa de Erdoğan, as ficções exibidas na TV aberta da Turquia têm perdido a liberdade de explorar certos assuntos. Como exemplo da isenção da censura, temos as produções turcas feitas para streaming. Nestas, é perceptível como os escritores e diretores são mais livres para abordar temas e sequências mais ousadas. 

A era da internet 

Embora as tramas turcas tenham perdido espaço na televisão aberta brasileira, esses folhetins estão cada vez mais populares nas redes sociais e isso reflete o quão intenso é o impacto dessas ficções fora dos limites da Turquia. 

Em 2018, a comédia romântica Erkenci Kuş, protagonizada por Can Yaman e Demet Özdemir, trouxe um público novo gigante, além de impulsionar a criação dos chamados fandoms. Apesar de não ter sido a pioneira a impulsionar o gênero, com certeza teve influência na forma como se consumem as novelas turcas hoje em dia pelos fãs. 

Erkenci Kuş impulsionou a repercussão nas redes sociais (Foto: Divulgação/Star TV)


O mais recente fenômeno nas mídias digitais foi a comédia romântica Sen Çal Kapımı, exibida pela emissora Fox TV na Turquia. O último episódio exibido em setembro de 2021 atingiu mais de 8 milhões de menções no Twitter, superando o recorde alcançado por Game of Thrones (2011-2019). Ademais, a rom-com turca figurou entre os assuntos mais comentados da rede social em mais de 25 países, assim ocupando uma das posições de destaque nos Trending Topics mundiais. No Brasil, a tag do episódio do dia ficou algumas horas como o assunto mais comentado do país. Atualmente, a telenovela está disponível no catálogo da HBO Max Brasil com o título Será Isso Amor?, além de sua exibição diária no canal por assinatura TNT Novelas

Séries ou novelas?

Seja fã ou não, talvez alguém já deve ter se feito esta pergunta dado as informações contrastantes disponíveis na internet. Diante da ausência de um documento oficial sobre o assunto, há algumas informações que podem nos ajudar a encontrar um conceito comum.

A telenovela, tal como conhecemos na América Latina, é um tipo de série de TV. Bom, pelo menos deveria ser dada a teoria sobre o que seria uma narrativa seriada. Série diz respeito a qualquer sequência, seja de filmes (trilogia...), livros (enciclopédia), música (playlist) ou episódios (telenovela, k-drama, dizi...). Todavia, aqui no Brasil e em alguns países próximos, o público tende a separar novela e série como gêneros diferentes, o que é um erro, pois somente a novela é um gênero. A série de TV é um formato televisivo. 

O fenômeno das novelas turcas mudou o mercado de telenovelas (Foto: Divulgação/Star TV)


Por isso é comum hoje em dia algumas indústrias criarem seus próprios termos, como o Chile que anuncia suas ficções como telesséries. Da mesma forma, na Turquia existe um padrão. Assim, no país euroasiático existe dois modelos: as produções diárias (episódios em torno de 60 min) e as produções semanais (episódios com cerca de 120 min). As primeiras geralmente contam com um elenco debutante e uma produção com menos investimento. Em contrapartida, as semanais reúnem um elenco de estrelas e capítulos com investimentos milionários segundo o Jornal El País. Porém, todas costumam ser divididas em temporadas, pois é mais barato para as produtoras manter uma produção por anos do que iniciar uma nova. 

Estas produções têm como carro chefe de seus enredos conflitos familiares, segredos, reviravoltas, lutas entre o bem o mal, questões morais, romance e tragédias. Em outras palavras, o que move as histórias é o bom, velho e criticado melodrama. Coincidência ou não, os mesmos elementos usados na telenovela. Por isso, quando exportadas, as distribuidoras editam os capítulos em um padrão de 45 minutos por episódio. Assim, estes folhetins podem se adequar ao formato de exibição da América Latina, que tende a exibir capítulos de segunda a sexta-feira.

Em um artigo do The Guardian a historiadora turca Arzu Ozturkmen define estas produções como um híbrido da telenovela com algo mais inovador. Segundo a mesma, no entanto, o certo seria fidelizar o termo “dizi” como um gênero, pois há uma forma particular de contar histórias que só estas ficções possuem. Claro, aqui ela se refere ao formato para a televisão aberta. As demais produções para streaming já se enquadram no padrão série de TV norte-americano que já conhecemos bem. 

Novelas turcas e o preconceito disfarçado

Apesar de muitos telespectadores “fantasmas” propagarem que as ficções turcas, por resgatarem um viés muitas vezes tradicional, apresentam desserviço em suas tramas, esse é apenas mais um estereótipo difundido com base no histórico sociocultural do país e que representa um preconceito disfarçado. 

Temas de impacto social como a violência de gênero, a desigualdade entre classes e o empoderamento feminino tem sido recorrente em diversas produções lançadas anualmente na Turquia. Em 2010, por exemplo, foi levado ao ar o drama Fatmagül'ün Suçu Ne?, que retrata a jornada de uma mulher em busca de justiça após ter sido violentada sexualmente.

Cena de Fatmagül (Foto: Divulgação/Kanal D)


Em 2018, Sen Anlat Karadeniz trouxe como discussão a negligência em torno da violência de gênero. Em 2020 teve Alev Alev, uma trama que apresenta a história de 3 mulheres lutando pela liberdade de usar seus direitos e conseguir justiça. Ou seja, todas essas abordagens citadas valem para qualquer local do planeta e refletem o quão ousados os folhetins turcos podem chegar a fim de retratar e conscientizar a sociedade sobre temas ainda sensíveis.

Sen Anlat Karadeniz deu voz às mulheres vítimas de violência doméstica (Foto: Divulgação/ATV)


Nesse aspecto, a grande problematização em torno das tramas turcas muitas vezes parte por uma visão mais radical em torno da abordagem de determinados temas. Não há problema em conscientizar o público sobre um assunto de abrangência social, considerando que a problemática deve primeiro ser exposta, para então ser discutida. É impossível, por exemplo, discutir sobre violência de gênero sem ter algum fundamento de que este tema é realmente um problema dentro do que está sendo mostrado. Se a narrativa não expõe o problema, então o discurso torna-se gratuito e vazio. 

Um fenômeno em expansão

A cada ano o catálogo de dizileri (como essas produções são chamadas na Turquia) tem sido impulsionado, sendo produzidas cerca de 15 ficções televisivas por ano. Em meio a esse cenário, o nome de diversos artistas da Turquia se tornou tendência em alguns países, como Can Yaman na Itália e Engin Akyürek na América Latina. 

Todo esse êxito despertou o interesse da Netflix pela teledramaturgia turca, a qual tem produzido algumas séries no país e disponibilizado em seu catálogo. Em 2020 a plataforma de streaming lançou a série Bir Başkadır (8 em Istambul), produção que recebeu sinal verde da crítica especializada pela abordagem realista do dia-a-dia de pessoas comuns na Turquia que possuem retratos sociais diferentes, e o choque cultural resultante disso. 

Seja na América Latina, na Europa, Oriente Médio ou em qualquer parte do globo, a dramaturgia turca tem chamado atenção. Enquanto o interesse internacional por esse tipo de produto continuar em alta, o mercado de ficções televisivas tende a crescer cada vez mais.


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